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(Re)Vivendo o Brasil: A Paixão Segundo G.H. | Resenha | Classe Literária

Foto do escritor: Classe LiteráriaClasse Literária

Resenha: A Paixão Segundo G.H. (1964)

As muitas frases soltas de Clarice Lispector que circulam na internet podem ter te apresentado a algum pequeno trecho do trabalho dessa grande escritora. Mas a verdade é que existe um oceano de riqueza literária e filosófica nas páginas dos livros escritos por Lispector. E é sobre uma das mais notáveis obras dessa autora que falaremos na nossa estréia da série (Re)vivendo o Brasil. Prepare sua alma já formada e seu estômago para ler sobre: A Paixão Segundo G.H (1964).

 

Sobre a série:

A série (Re)Vivendo o Brasil do Classe Literária tem por objetivo promover um primeiro contato ou um reencontro a você, leitor do mundo, com obras consagradas de autores já falecidos da literatura nacional. Os clássicos que vamos (re)viver aqui são únicos pra construção do que é a leitura e a escrita hoje no nosso país e são verdadeiras vivências para seus leitores, por isso nossa resenha é sempre um pequeno contato com o verdadeiro mergulho que é a experiência total da leitura dos livros que falaremos aqui.

“Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.” - CALVINO, Ítalo. Por que Ler os Clássicos...p.11.
 

Sobre o Livro:

A Paixão Segundo G.H. (1964)

Este que os escreve, afirma com segurança de que esta resenha não passa de uma tentativa frustrada de usar a linguagem para trazer à tona a sensação de ler a obra que se frustra com a linguagem em trazer à tona a sensação da verdade da vida. Confuso, não? Pode ser, mas Clarice Lispector não faz concessões e A Paixão Segundo G.H. não abre mão da sua grandiosidade. O romance que conta a viagem de G.H. ao neutro da existência e suas passagens pelo paraíso e o inferno, é de uma sensação exclusiva. Clarice disse em uma famosa entrevista que fora abordada por dois diferentes leitores do livro. O primeiro: um literato, professor do Colégio Pedro II, que dissera à escritora que após ler quatro vezes a obra ainda não sabia do que se tratava o livro. O segundo: Uma jovem de 17 anos, que confessara também uma releitura frequente do romance de Lispector, mas o motivo da leitura constante era sua profunda afeição para com livro. Com 180 páginas, A Paixão Segundo G.H. é uma mordida maior que a boca da racionalidade, por isso uma dica para a melhor compreensão desta obra é: Não compreenda, SINTA.


“Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente - atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria.” - LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H....p.2.

Enredo:


Que pretensão é tentar desenvolver uma linha de escrita para este tópico intitulado “entendendo a obra”, visto que a personagem que protagoniza este romance disserta sobre a linguagem e sobre como é, de certa forma, ganancioso daquele que usa a fala tentar resumir todas as grandezas que existem em palavras. Bom, vamos então partir dos lugares mais claros da obra, A Paixão Segundo G.H. tem, como muitas obras de Clarice Lispector, um cenário a primeira vista totalmente prosaico e até minimalista. Uma mulher de meia-idade, que trabalha fazendo esculturas, mora num apartamento na zona sul do Rio de Janeiro, especificamente em Copacabana, e narra ao leitor e a si mesma, acontecidos do dia anterior.

As passagens da personagem principal em torno de sua personalidade não são muito esclarecedoras, G.H. se avalia e se apresenta ao autor numa ótica muito mais subjetiva. Aliás, a subjetividade será a verdadeira protagonista do livro. A escultora usará de muitos termos e conceitos para nos mostrar a intensidade do que estivera sentindo no dia anterior. Ideais como “Deus”, “Paraíso” e “Inferno” serão muito presentes para que a personagem consiga entregar a quem lê, a visceralidade das importâncias que tem conflitado em suas linhas de pensamento. Numa linha de tempo real, tudo se passa em apenas algumas horas do dia anterior aos relatos.

"Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação. Como é que se explica que o meu maior medo seja exatamente em relação: a ser? e no entanto não há outro caminho. Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal desorganização?" LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H....p.5-6.
Maria Fernanda Cândido como "G.H." na adaptação cinematográfica de Luiz Fernando Carvalho.

Na perspectiva prática, eis a história: G.H, uma mulher moradora de um apartamento na cobertura de um prédio na zona sul do Rio de Janeiro, narra a si e ao leitor fatos curiosos do dia anterior à sua narração. A mulher começa falando que se encontrava sentada na mesa de sua cozinha a enrolar pequenos miolos de pão. A personagem ficara ali e momentaneamente refletira sobre seu tédio e algumas questões relativas ao que fazer durante o dia. Resolvera então arrumar, atividade para qual acreditava ter uma espécie de vocação desde muito tempo, e teria feito de tal sua profissão caso não fosse uma atividade considerada subalterna a alguém de seu status social. A motivação da arrumação vem de um pequeno conflito de algum tempo atrás, sua empregada, Janair, após seis meses de trabalho se demitira por algum motivo e agora a dona do apartamento teria de tomar a frente da organização e limpeza de sua própria casa. Após se recostar na varanda da moradia e admirar a vista enquanto fumava, a personagem resolvera começar a faxina pelo quarto da empregada. O caminho até o chamado posteriormente de “minarete” é descrito bem dramaticamente, a personagem que dá título à obra após jogar fora seu último cigarro, caminha em direção aonde a doméstica habitara. G.H. claramente espera encontrar o quarto em situação abandonada e suja, porém ao entrar no cômodo e encontra-lo em situação limpa e estática, a primeira ruptura nos moldes frágeis que prendiam-na a sua inércia acontece. Depois de observar bem aquele pedaço de seu apartamento que já não parecia tanto seu, a mulher percebe que sua antiga empregada deixara ali um desenho na parede branca. As figuras que são: o contorno de uma mulher, de um homem e de um cachorro feitas a carvão uma ao lado da outra.*** conseguem atingir totalmente a protagonista do livro que se vê então mais uma vez em conflito com aquilo deixado pela empregada. Segue então para aquele que será o mais importante ponto do romance escrito por Lispector: G.H. abre então a porta do armário e se encontra com uma “barata velha”. A partir deste ponto, toda trama começa a se desenvolver findando em seu ápice que é o momento dramático onde G.H come a barata.

“A entrada para este quarto só tinha uma passagem, e estreita: pela barata. A barata que enchia o quarto de vibração enfim aberta, as vibrações de seus guizos de cascavel no deserto. Através de dificultoso caminho, eu chegara à profunda incisão na parede que era aquele quarto - e a fenda formava como numa cave um amplo salão natural.” - LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H....p.41.

Texto:

Clarice Lispector (1920-1977)

As características textuais e linguísticas desta obra são marcas potencializadas de sua autora. O visceral das descrições de G.H. em torno de suas impressões a respeito do mundo, do que refletira e vera, é o fio condutor de toda a trama. A dona do apartamento além de ser a narradora do texto, é tudo aquilo que compõe e se apresenta como importante na hora da leitura. Tudo que temos é G.H. e somos a sua companhia nestas viagens. O leitor possui em teoria o poder de determinar sua distância da trama e do que corre nos capítulos, mas na prática, o caráter imersivo das confissões da mulher é a única coisa que nos dá a segurança de entendê-la. É preciso ser G.H.

As imagens também são muito importantes, Clarice usa mão de seu famoso olhar microscópico para trabalhar todos os detalhes do cenário aparentemente simplista de um quarto vazio. Porém toda vez que a personagem principal sente a chegada de uma mudança, os conceitos já vistos se embaralham numa espécie de redescobrimento. G.H. sente o novo como uma dor profunda e todo o foco do enredo é o que ela está pensando e sentindo, e é quase impossível não passar cada palavra do livro sem franzir o rosto para não deixar passar tudo que está atravessando a mente e o coração da escultora.

Clarice trabalha também termos ambíguos, tudo com o objetivo de tratar com verdade toda a natureza do cerne das coisas que G.H. tanto almeja chegar à. Lemos sobre grandes e imponentes paisagens, grotescas e velhas baratas e poderosos e conflitantes elementos da vida enquanto estamos trancados em um quarto.


Interpretações e análise:

Compreendendo a cronologia dos fatos ocorridos no plano real de A Paixão Segundo G.H., conseguiremos então imergir no segundo e mais importante universo da obra: o subjetivo. E é ele quem estrutura o livro a toda sua grandeza.

É preciso antes de tudo ter uma visualização ampla daquela que dá nome ao romance. G.H. é uma personagem que está sempre se mostrando de diferentes formas e é preciso não só acompanha-las, mas também diferi-las. A primeira G.H. não é aquela que nos primeiros travessões narra o enredo, a primeira apresentação da personagem ao leitor é a da mulher das fotos. G.H. vai dizer sobre sua pessoa antes de entrar no quarto da empregada como uma mulher com um olhar vazio e um certo oco que não vem apenas dos olhos. Mas esse não será o ponto determinante para compreendê-la, o mais gritante e silencioso aspecto da G.H. antes da sua entrada no “minarete” é a inércia na qual se encontrara. O movimento cuja origem é o próprio movimento, G.H. seria si mesma de tal maneira que descrevera poder encontrar as iniciais de seu nome até nas próprias valises. Sem aprofundamentos, sem paraíso, céu ou inferno. Aquilo que os outros conheciam dela, era aquilo que a compunha.

“Em torno de mim espalho a tranquilidade que vem de se chegar a um grau de realização a ponto de se ser G.H. até nas valises. Também para a minha chamada vida interior eu adotara sem sentir a minha reputação: eu me trato como as pessoas me tratam, sou aquilo que de mim os outros veem. Quando eu ficava sozinha não havia uma queda, havia apenas um grau a menos daquilo que eu era com os outros, e isso sempre foi a minha naturalidade e a minha saúde. E a minha espécie de beleza. Só meus retratos é que fotografavam um abismo? Um abismo.” - LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H....p.16.

Conhecer a G.H. de antes é fundamental pra compreender a força da ruptura que a acometera no momento da entrada no quarto de sua empregada. O mundo de Janair, aquele que a sua patroa esperava encontrar sujo e desorganizado, é o primeiro novo contato de G.H. com a reflexão. O quarto da empregada fora sua chegada ao outro, no mundo alheio, aquele que não estava nas suas valises e que não poderia ser capturado pelo olhar vazio de uma lente de câmera. Encontrar o desenho na parede é também desvendar a questão de preconceito racial e social. Reconhecer a empregada, negra, a qual sequer lembrava o rosto, como feitora daquela expressão que poderia ser uma espécie de recado deixado, era compreender não só a existência do outro como o diferente de si, mas tal qual o outro como feitor das coisas. A empregada não apenas a servira, ela pensara, sentira, possivelmente odiara, e desenhara em paredes também. Janair não só a deixou, como também a deixou longe do mundo velho, aquele em que G.H. podia se achar a até nas próprias valises, e que era o mais confortável. Num quarto cheio de interrogações pela sua limpeza, num rabisco cheio de complexidade pelo seu simplismo, G.H sente a dor de ser uma estrangeira dentro da própria casa.

“A lembrança da empregada ausente me coagia. Quis lembrar-me de seu rosto, e admirada não consegui - de tal modo ela acabara de me excluir de minha própria casa, como se me tivesse fechado a porta e me tivesse deixado remota em relação à minha moradia. A lembrança de sua cara fugia-me, devia ser um lapso temporário.” - LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H....p.26.
Cockroach by TamaDistler

Ocorre então o encontro que definirá totalmente os rumos da trama, o encontro de G.H. com a barata. O acontecimento aparentemente parece se limitar a reação de nojo e surpresa que a mulher tem ao se deparar com o inseto, a dona do imóvel ficara surpresa com a existência da barata em seu apartamento, já que afirmava ter dedetizado o ambiente outras vezes. Após afastar-se da barata, G.H. se impulsiona para se livrar dela e então fecha a porta do armário, onde achou o animal, para mata-lo. Porém a barata não morre, apenas se sapara de uma parte do seu corpo que expele a matéria branca que compõe o seu interior.

Tratar o encontro da personagem com a barata como apenas uma situação grotesca e desagradável para leitura, seria uma espécie de desrespeito ao romance de Lispector. Para compreender a passagem, primeiro devemos entender que a figura da barata tem um significado. O primeiro encontro de G.H. com o outro se dá na entrada do “minarete”, ao encontrar a barata, a mulher não só tem um primeiro contato com o aquilo que lhe é diferente, como aquilo que a incomoda e chega até a ser repulsivo. A barata possui muitas figurações, mas a sua mais gritante a todos nós é a imagem do ser que nos causa nojo. Ter que ver o interno da barata e decidir entre o perecer e a condenação definitiva do inseto, força G.H. a reconhecer que ainda havia vida no animal, e acima de tudo, havia vida neutra. O neutro da existência vive naquele ser, aos olhos da personagem, tão incômodo. A protagonista ao perceber que lidar com o fato de que a verdade que a barata escancara, a verdade sem flores ou lágrimas, é aceitar que a realidade da vida se assemelha muito mais com o que vive naquele ser do que o que habita nos olhos vazios do retrato de uma escultora qualquer.

A viagem de G.H. em busca da verdade que a tanto a incomodou no encontro com a barata começa e o leitor é convocado a seguir a personagem. G.H. precisa voltar a amores antigos, especialmente um a quem muito recorda, entender a totalidade das coisas a qual chama “Deus” e chegar na coisa que se faz mais neutra que qualquer outra. Porém ter os olhos que enxergam as coisas como são, é muito mais que um fardo. Após tanto refletir e sentir, G.H. não está certa de que estaria finalmente vivendo a verdade da vida, distante das falácias e significados superficiais nos quais se banhara até hoje. O neutro é apenas o que é, ser G.H. não era nada, para ser-se totalmente, G.H. deveria se distanciar de todo o supérfluo que vivera até dado momento. Então, com certo pânico e pudor, a personagem levanta e inconscientemente come a massa branca da barata, que era o maior desafio para se desvincular de tudo aquilo que mentira para si, G.H. deveria sentir o gosto neutro da vida.

A grande verdade a qual Clarice Lispector figura em A Paixão Segundo G.H. como sendo muitas coisas é uma das muitas maneiras que a arte usa de conectar-se com aquele que a observa de alguma maneira. A linguagem é a mais pretenciosa habilidade do homem, porque através dela, ousamos alçar voos aos céus e infernos, ousamos tocar nos deuses e nos homens e vivemos histórias que não são nossas. G.H. encerra a obra na segurança de saber que a verdade que tanto buscou é indizível. Não há escritas em valises, não há castelos em Copacabana, não há verdade alguma na massa branca de uma barata. Entender o final desta obra visceral, é entender que o entendível é falso. Não se sai da leitura de A Paixão Segundo G.H. da mesma maneira que se entra, mas o diálogo é simples. G.H., a barata, Janair, o quarto, Copacabana e Clarice Lispector se-te-são e cabe a você adorar ou não.

“O mundo independia de mim - esta era a confiança a que eu tinha chegado: o mundo independia de mim, e não estou entendendo o que estou dizendo, nunca! nunca mais compreenderei o que eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro.” - LISPECTOR, Clarice. A Paixão segundo G.H....p.122.

O Classe Literária agradece sua leitura e esperamos ter sido uma boa experiência.

Fique atento às novas publicações e entre em contato conosco para sugestões e críticas.

Leitores do mundo, uni-vos!

 

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